terça-feira, 28 de março de 2023

Prémio Montaigne - Vitorino Nemésio

 



D.L.

Tenho uma Saudade tão Braba

Tenho uma saudade tão braba
Da ilha onde já não moro,
Que em velho só bebo a baba
Do pouco pranto que choro.

Os meus parentes, com dó,
Bem que me querem levar,
Mas talvez que nem meu pó
Mereça a Deus lá ficar.

Enfim, só Nosso Senhor
Há-de decidir se posso
Morrer lá com esta dor,
A meio de um Padre Nosso.

Quando se diz «Seja feita»
Eu sentirei na garganta
A mão da Morte, direita
A este peito, que ainda canta.

Vitorino Nemésio, in "Caderno de Caligraphia e outros Poemas a Marga"


quarta-feira, 8 de março de 2023

Dois Poemas de Guerra Junqueiro

Minha Mãe, Minha Mãe!

Minha mãe, minha mãe! ai que saudade imensa,

Do tempo em que ajoelhava, orando, ao pé de ti.

Caía mansa a noite; e andorinhas aos pares

Cruzavam-se voando em torno dos seus lares,

Suspensos do beiral da casa onde eu nasci.

Era a hora em que já sobre o feno das eiras

Dormia quieto e manso o impávido lebréu.

Vinham-nos da montanha as canções das ceifeiras,

E a Lua branca, além, por entre as oliveiras,

Como a alma dum justo, ia em triunfo ao Céu!...

E, mãos postas, ao pé do altar do teu regaço,

Vendo a Lua subir, muda, alumiando o espaço,

Eu balbuciava a minha infantil oração,

Pedindo ao Deus que está no azul do firmamento

Que mandasse um alívio a cada sofrimento,

Que mandasse uma estrela a cada escuridão.

Por todos eu orava e por todos pedia.

Pelos mortos no horror da terra negra e fria,

Por todas as paixões e por todas as mágoas...

Pelos míseros que entre os uivos das procelas

Vão em noite sem Lua e num barco sem velas

Errantes através do turbilhão das águas.

O meu coração puro, imaculado e santo

Ia ao trono de Deus pedir, como inda vai,

Para toda a nudez um pano do seu manto,

Para toda a miséria o orvalho do seu pranto

E para todo o crime a seu perdão de Pai!...


(...)


A minha mãe faltou-me era eu pequenino,

Mas da sua piedade o fulgor diamantino

Ficou sempre abençoando a minha vida inteira,

Como junto dum leão um sorriso divino,

Como sobre uma forca um ramo de oliveira!


(Excerto do Poema «Aos Simples»)


Guerra Junqueiro, in 'A Velhice do Padre Eterno'


Portugal

Maior do que nós, simples mortais, este gigante

foi da glória dum povo o semideus radiante.

Cavaleiro e pastor, lavrador e soldado,

seu torrão dilatou, inóspito montado,

numa pátria... E que pátria! A mais formosa e linda

que ondas do mar e luz do luar viram ainda!

Campos claros de milho moço e trigo loiro;

hortas a rir; vergéis noivando em frutos de oiro;

trilos de rouxinóis; revoadas de andorinhas;

nos vinhedos, pombais: nos montes, ermidinhas;

gados nédios; colinas brancas olorosas;

cheiro de sol, cheiro de mel, cheiro de rosas;

selvas fundas, nevados píncaros, outeiros

de olivais; por nogais, frautas de pegureiros;

rios, noras gemendo, azenhas nas levadas;

eiras de sonho, grutas de génios e de fadas:

riso, abundância, amor, concórdia, Juventude:

e entre a harmonia virgiliana um povo rude,

um povo montanhês e heróico à beira-mar,

sob a graça de Deus a cantar e a lavrar!

Pátria feita lavrando e batalhando: aldeias

conchegadinhas sempre ao torreão de ameias.

Cada vila um castelo. As cidades defesas

por muralhas, bastiões, barbacãs, fortalezas;

e, a dar fé, a dar vigor, a dar o alento,

grimpas de catedrais, zimbórios de convento,

campanários de igreja humilde, erguendo à luz,

num abraço infinito, os dois braços da cruz!

E ele, o herói imortal duma empresa tamanha,

em seu tuguriozinho alegre na montanha

simples vivia – paz grandiosa, augusta e mansa! -,

sob o burel o arnês, junto do arado a lança.

Ao pálido esplendor do ocaso na arribana,

di-lo-íeis, sentado à porta da choupana,

ermitão misterioso, extático vidente,

olhos no mar, a olhar sonambolicamente...

«Águas sem fim! Ondas sem fim! Que mundos novos

de estranhas plantas e animais, de estranhos povos,

ilhas verdes além... para além dessa bruma,

diademadas de aurora, embaladas de espuma!

Oh, quem fora, através de ventos e procelas,

numa barca ligeira, ao vento abrindo as velas,

a demandar as ilhas de oiro fulgurantes,

onde sonham anões, onde vivem gigantes,

onde há topázios e esmeraldas a granel,

noites de Olimpo e beijos de âmbar e de mel!»

E cismava, e cismava... As nuvens eram frotas,

navegando em silêncio a paragens ignotas...

– «Ir com elas...Fugir...Fugir!...» Ûa manhã,

louco, machado em punho, a golpes de titã,

abateu, impiedoso, o roble familiar,

há mil anos guardando o colmo do seu lar.

Fez do tronco num dia uma barca veleira,

um anjo à proa, a cruz de Cristo na bandeira...

Manhã de heróis... levantou ferro... e, visionário,

sobre as águas de Deus foi cumprir seu fadário.

Multidões acudindo ululavam de espanto.

Velhos de barbas centenárias, rosto em pranto,

braços hirtos de dor, chamavam-no... Jamais!

Não voltaria mais! Oh! Jamais! Nunca mais!

E a barquinha, galgando a vastidão imensa,

ia como encantada e levada suspensa

para a quimera astral, a músicas de Orfeus:

o seu rumo era a luz; seu piloto era Deus!

Anos depois, volvia à mesma praia enfim

uma galera de oiro e ébano e marfim,

atulhando, a estoirar, o profundo porão

diamantes de Golconda e rubins de Ceilão!


Guerra Junqueiro, in 'Pátria'