domingo, 19 de maio de 2024

JÚLIO DANTAS

 

D.L.


...   ...
Em que pensa, cardeal? 

CARDEAL GONZAGA, como quem acorda, os olhos cheios 
de brilho, a expressão transfigurada 
Em como é diferente o amor em Portugal! 
Nem a frase subtil, nem o duelo sangrento... 
é o amor coração, é o amor sentimento. 
Uma lágrima... Um beijo... Uns sinos a tocar... 
Um parzinho que ajoelha e que vai se casar. 
Tão simples tudo! Amor, que de rosas se inflora: 
Em sendo triste canta, em sendo alegre chora! 
O amor simplicidade, o amor delicadeza... 
Ai, como sabe amar, a gente portuguesa! 
Tecer de Sol um beijo, e, desde tenra idade, 
Ir nesse beijo unindo o amor com a amizade, 
Numa ternura casta e numa estima sã, 
Sem saber distinguir entre a noiva e a irmã... 
Fazer vibrar o amor em cordas misteriosas, 
Como se em comunhão se entendessem as rosas, 
Como se todo o amor fosse um amor sòmente... 
Ai, como é diferente! Ai, como é diferente! 

CARDEAL RUFO  
Também vossa Eminência amou? 

CARDEAL GONZAGA  
Também! Também! 
Pode-se lá viver sem ter amado alguém! 
Sem sentir dentro d’alma - ah, podê-la sentir! _ 
Uma saudade em flor, a chorar e a rir! 
Se amei! Se amei! _ Eu tinha uns quinze anos, apenas. 
Ela, treze. Um amor de crianças pequenas, 
Pombas brancas revoando ao abrir da manhã... 
Era minha priminha. Era quase uma irmã. 
Bonita não seria... Ah, não... Talvez não fosse. 
Mas que profundo olhar e que expressão tão doce! 
Chamava-lhe eu, a rir, a minha mulherzinha... 
Nós brincávamos tanto! Eu sentia-a tão minha! 
Toda a gente dizia em pleno povoado: 
“Não há noiva melhor para o senhor morgado, 
Nem em capela antiga há santa mais santinha...” 
E eu rezava, baixinho: “É minha! É minha! É minha” 
Quanta vez, quanta vez, cansados de brincar,  
Ficávamos a olhar um para o outro, a olhar, 
Todos cheios de Sol, ofegantes ainda... 

Numa grande expressão de dor: 

Era feia, talvez, mas Deus achou-a linda... 
E, uma noite, a minha alma, a minha luz, morreu! 

Numa revolta angustiosa: 

Deus, se ma quis tirar, p’ra  que foi que ma deu? 
Para quê? Para quê? 

CARDEAL DE MONTMORENCY, ao vê-lo 
erguer-se, amparando-o: 
  Oh! Eminência... 

CARDEAL RUFO, curvando-se também para o amparar, 
comovido: 
Então... 

CARDEAL GONZAGA 
Ai! Pois não via, Deus, que eu tinha coração! 

CARDEAL RUFO 
Eminência 

CARDEAL GONZAGA, caindo sobre a cadeira, a soluçar 
Não via! Ah!, não via! Não via! 
Julgou que de um amor outro amor refloria, 
E matou-me... E matou-me! 

CARDEAL DE MONTMORENCY  
Eminência... 

CARDEAL GONZAGA 
Afinal, 
Foi esse anjo, ao morrer, que me fez cardeal! 
E eu hoje sirvo a Deus, _ a Deus, que ma levou... 

CARDEAL RUFO, a DE MONTMORENCY, limpando 
 uma lágrima furtiva, enquanto as onze horas soam no Vaticano 

Foi ele, de nós três, o único que amou. 

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